Sunday, September 26, 2010

Gótico: Histórico Dos Usos E Significados

Vamos pensar numa coisa bem simples: esse termo aparece em vários sites e mesmo muitas pessoas o usam de forma totalmente distorcida ou mesmo fora de contexto. Muita gente ainda acha que todos os seus significados possuem, num termo geral, uma relação direta de significação, coisa que é totalmente errada. Com isso nesse artigo eu quero expor os usos possíveis dentro de seus contextos e como um ajudou a influenciar no significado do outro, muito embora hoje eles sejam totalmente distantes.

Arquitetura Gótica

A princípio, ela se refere a um estilo arquitetônico e escultural da Idade Média, que diferia do estilo românico, baseado no modelo romano de arquitetura. Engloba também a pintura e a iluminura, que serão explicados a seguir.

Na parte da arquitetura, ela surge como contraponto à arquitetura clássica. Possui formas mais geometrizadas e retas, refletindo um fato que vai influenciar muito na pintura e na iluminura também. O homem medieval acreditava que Deus vê as coisas muito de cima e vê tudo como se fossem formas geométricas. Desse modo, há uma predominância muito grande dessas formas, que mais tarde seriam revistas pela escola de vanguarda alemã Bauhaus. O grande chamariz desse tipo de arquitetura são as catedrais. Enormes, imponentes e rebuscadas, possuem uma construção que era feita para a entrada da maior quantidade possível de luz ambiente, mostrando a grandeza de Deus e de sua pureza dentro da escuridão. Predominavam nelas também os vitrais, coloridos, que sempre tinham temas ligados à religião cristã. As torres eram sempre altas e pontiagudas, na tentativa de alcançar Deus. A escultura era um complemento à própria construção. Devido ao medo crescente do homem medieval com as invasões dos bárbaros. Gárgulas eram colocadas na tentativa de assustar os espíritos do mal (como esses bárbaros eram vistos pelas pessoas comuns). Havia nisso uma sensação muito grande de verticalidade, onde a pessoa sempre tinha a impressão de que tudo convergia para o alto e, portanto, para os céus.

Já a pintura tratava da bidimensionalidade, ou seja, não existiam planos e nem perspectiva. As imagens eram chapadas, sempre com alguma imagem divina maior ou algum demônio colocado de forma horrenda e grotesca, que servia para aumentar o medo da pessoa ir para o Inferno e que teria de enaltecer Deus. Toda a pintura medieval ligada à arte gótica vai formar uma forma geométrica reta ou mais de uma.

As iluminuras são pequenos desenhos feitos na abertura de capítulos de livros, iniciais de documentos, aliando ornamentação à pintura. Os temas são bidimensionais, da mesma forma que acontece com a pintura. Os artistas que faziam essas iluminuras eram muito bem pagos para fazerem-nas, contudo, costumavam ficar cegos com o tempo, muitos antes dos 30 anos, devido ao esforço visual que se fazia para colocar o rebuscamento que essa arte pede.

Mas por que então essa arte passou a ser chamada de gótica? Agora que entra um fator que muitos ignoram ou mesmo confundem na hora de descrever essa forma artística.

No período em que fora concebida, essa arte não tinha um nome especifico. O homem medieval não chamava aquilo tudo de gótico, tampouco lhe passava a idéia de fazê-lo. Aconteceu que, durante o período do Humanismo italiano e no começo do Renascimento, os artistas propunham uma volta aos ideais clássicos, ou seja, gregos. A arte românica, outrora pouco valorizada, ganhava um certo status. Com isso esses mesmos artistas italianos passaram a ter um certo repúdio da arte medieval, que era considerada antiquada e “tosca”. Como forma depreciativa, passaram a chamar a mesma de gótica, uma alusão ao povo godo.

Esse povo era um ancestral dos teutônicos, invadindo os impérios romanos no século III, dividindo-se em godos do leste (ostrogodos) e do oeste (visigodos). Não foram eles que construíram as catedrais góticas ou qualquer coisa relacionada com essa forma de expressão artística. Esse povo era um povo bárbaro, mais conhecido por saquear e pilhar as cidades por onde passavam. Eram nativos da Gótia, na região hoje conhecida como Suécia e migraram tanto para a península ibérica (ostrogodos) e para a península itálica (visigodos), sendo que esses últimos foram responsáveis pela conservação e manutenção de diversos monumentos romanos.

Por conta de tudo isso que aqueles antigos castelos, aquelas catedrais majestosas, entre outras construções medievais, soavam de mal gosto para os italianos renascentistas. Daí o denominativo, que ficou até hoje para designar a arte medieval.


Romance Gótico

Aqui entra a segunda conotação do termo gótico. Antes de explicar acerca dele, é preciso que entendam um pouco de literatura, sobretudo inglesa, do século XVIII até o XIX. O panorama histórico da Europa nesse período era marcado por uma Revolução Industrial muito forte, pela Revolução Francesa e pela ascensão da burguesia ao poder. Isso se refletiu muito na forma com que a literatura seria concebida na Inglaterra e, com isso, no resto do mundo.

Os escritores ingleses estavam cansados daquela linguagem artificial pregada pelos gramáticos do século anterior, com seus manuais do bem falar e do bem dizer. Cansados de terem de escrever numa linguagem que não era a que eles falavam no dia a dia. Impulsionados pela queda da monarquia absolutista e a ascensão daqueles que se diziam a favor de toda a liberdade, os escritores passaram a escrever com mais liberdade. Só que ao mesmo tempo, a cidade se mostrava um local ruim, uma vez que a própria revolução industrial mostrava sinais da desigualdade social. Era preciso sair dali. Era preciso voltar ao passado glorioso, dos tempos de cavalaria. Era preciso mostrar ao mundo que os sentimentos precisavam ser expostos, coisa proibida pelos árcades ingleses. A partir daí surgiria o Romantismo.

Apesar de ser um movimento inglês, um autor que influenciou muito na forma de como a escola literária se pautaria seria, sem sombra de dúvidas, Goethe. Com seu livro, Os sofrimentos do jovem Werther, ele inauguraria uma literatura subjetiva, voltada para o eu, para o mundo interior, que traria de volta o mito, o medo, a vontade, a alegria, a tristeza e muitas outras coisas que vinham de outros tempos. Com isso ajudaria na criação do romance, que é a forma de literatura que o Romantismo trouxe e permanece até hoje.

Com tudo isso teve começo a era mais gloriosa da literatura inglesa. Muitos escritores produziam muita coisa ao mesmo tempo, houve uma renovação da poesia e a prosa começava a ganhar uma notoriedade maior. Mesmo sendo uma literatura com valores burgueses, alguns escritores criticavam a burguesia em seus escritos, mas sem o mesmo teor que a escola realista francesa imprimiria, com a evolução da ciência humana.

Só que na Inglaterra não existiu um Romantismo dividido em fases, uma vez que se produzia de tudo naquele lugar nesse período. Existia um Percy Shelley e sua poesia forte, calcada em temas contra a dominação ao mesmo tempo em que existia um bucólico como William Wordsworth e seus temas pastoris. É possível afirmar que não existe uma unidade em termos do que, de fato, caracteriza a escola romântica inglesa e tampouco existem fases, como acontece no Brasil e em Portugal.

Dentro desse meio começam a surgir alguns romances que abordavam temas do passado, lendas, ocultismo, tudo isso com elementos ligados à morte e ao pessimismo. Isso passou a ser chamado de romance gótico.

Esse forma de romance surgiu na Inglaterra com a publicação do livro The Castle of Otranto (O Castelo de Otranto), em 1794, por Horace Walpole. A história se passa num castelo, herdado por Manfred, mas uma maldição o impede de tomar posse em definitivo. Esse romance possui como ponto central um castelo medieval e aparecem claras referências ao período medieval, como fantasmas, armaduras, passagens secretas, lendas, entre outras coisas. Um romance que desafiava a lógica científica de algumas pessoas e que se colocava em contraponto com muitas das idéias do homem pós-Revolução Industrial. Por conta desses elementos passou a ser chamada de gótica essa forma de se fazer romance, criando então o romance gótico. Ele passou a pegar elementos do teatro para aumentar a sua dramaticidade, sobretudo as tragédias de Shakespeare, visível em escritores como Ann Radcliff, Mary Shelley, Bram Stocker e outros, que também inaugurariam a literatura voltada para o horror sobrenatural, resgatando velhos mitos e colocando-os em suas obras.

Pelo fato desses romances serem carregados de uma carga imensa de melancolia, de medo, de sobrenatural e do desconhecido, qualquer romance escrito com essas características passou a ser chamado de gótico.Esse termo perdeu o caráter pejorativo que tinha, depois de muito tempo, passando a se mostrar como algo realmente rentável, atendendo a um novo público que buscava sempre comprar e adquirir as histórias assustadoras. O romance gótico então é fruto do romantismo inglês, carregando consigo os mesmos valores que qualquer obra romântica, com forte apelo a um comercialismo emergente. Só que nesse caso buscava-se mostrar a mortalidade do próprio homem frente aquilo que ele não podia controlar.

Alguns podem afirmar que Edgar Alan Poe era um escritor gótico. Alan Poe, mesmo povoando algumas de suas obras com o sobrenatural, ajudou a conceber o elemento do suspense, criando muitas das coisas que hoje se vê nos romances policiais e de suspense. Foi de grande importância para a literatura inglesa escrita na Inglaterra como um todo, influenciando gente como Conan Doyle, autor de Sherlock Holmes.

Antes de concluir essa parte, é preciso ressaltar que a literatura gótica nunca existiu. Nunca existiu também nenhuma forma de poesia chamada de “gótica”, por assim dizer. Tanto que poemas com elementos de tristeza, de sentimentalismo e outros já existiam desde o período medieval. O que os românticos acabaram fazendo foi, em alguns casos, um resgate dessas poesias e adaptarem a nova forma. O Romantismo previa a liberdade de criação (embora ainda seguindo a métrica e em alguns casos, a rima), podendo ou não usar desses elementos.





Contexto Moderno: O movimento gótico

Obs: caso queira saber sobre o gothic metal, por favor, buscar esse artigo.

Certo, até aqui o termo gótico acompanhou dois contextos, um arquitetônico e outro literário. E como esse termo veio parar no movimento dos anos 80?

A banda Joy Division foi a primeira a ser rotulada de gótica, mas não em termos de sonoridade propriamente dita, mas sim isso aliado a letras melancólicas e tristes e um visual mais retrô. Esse era o termo usado pelos jornalistas para designar qualquer banda que fosse similar ao Joy Division e também ao Siouxsie and the Banshees.

Agora, como esse termo entrou exatamente na subcultura é uma grande incógnita. A primeira hipótese é pela entrevista dada por Abbo, do UK Decay, que acabou meio que dando um “nome” a esse movimento. Na entrevista dada a revista Sounds, de fevereiro de 1982, segundo Steve Keaton: "he said 'it's gonna be a movement' and we're going nah, we'll be gone in six months. He said you've got to get a name for it, it's not dance or alternative or New Pop or mod... and I remember saying 'we're into the whole Gothic thing'... and we sat there laughing about how we should have gargoyle shaped records and only play churches. Course he put it all in the interview.. for six months everything went quiet then when the album came out everyone was asking 'what's this Gothic thing you're into?' And it's a total joke!” (Tradução: ele disse que isto ‘viria a ser um movimento’ e ‘que não éramos nenhum, nós seriamos em seis meses’. Ele disse que você daria um nome a ele, que não seria dance, alternativo, New Pop ou moderno... e me lembro dizendo ‘ estamos nessa coisa gótica toda’ e que nós estaríamos sentados, rindo sobre como teríamos gravações em forma de gárgulas e tocando somente em igrejas. Claro que ele colocou isto em toda a sua entrevista, por seis meses tudo estava quieto quando então o álbum veio e todo mundo esta perguntando ‘ o que é esta coisa gótica? Isto é uma piada!”)

E em outras entrevistas ele continuaria a usar o mesmo termo “gótico” para se referir ao movimento que até então não tinha um nome.

Outra possível paternidade para o termo é atribuída a Ian Astbury, vocalista do Southern Death Cult (que mais tarde viria a se chamar simplesmente de The Cult). Ele clama a si como o autor desse termo dentro da música, como confirmou em uma entrevista dada à Alternative Press em novembro de 1994 e na Details Magazine, em julho de 1997. num artigo intitulado "The Gloom Generation", onde cita que o termo surgiu como uma brincadeira com Andi Sex Gang, líder da banda Sex Gang Children. Isso teria acontecido pelo fato de seus fãs usar roupas similares a de grupos como Bauhaus e Specimen, grupos chamados pelos jornalistas de góticos.

Então o termo gótico aqui perdeu toda a sua ligação com a arquitetura gótica e com o romance gótico. Talvez a semelhança entre eles seja o fato de que, depois que esse termo virou corrente dentro dessa tribo urbana, muitos passaram a pesquisar coisas dentro da literatura e das artes medievais e incorporarem esses elementos em maior ou menor grau. Mas isso não liga os góticos com os romancistas ingleses e nem com os godos, tampouco os liga com a arquitetura medieval francesa, que fugia da estética clássica e buscava exaltar a grandeza de Deus. É apenas um movimento que nasceu de uma “evolução” da cena post-punk na década de oitenta e não possui, portanto, nenhuma ligação com o período medieval e nem com seitas místicas ou mesmo com bases ideológicas.


Referências

Para quem quiser saber mais sobre os temas abordados nesse artigo, eu recomendo a leitura de alguns livros e sites, que discrimino abaixo:

Sites

História da Arte
Contém resumos muito interessantes sobre diversos movimentos artísticos. É bem completo, vale uma lida.

Scathe Demon
Não adianta chiar, esse é o melhor site sobre a subcultura gótica que tem na net, com muitas informações preciosas acerca da cena.

Luminarium
Com muita informação sobre a literatura inglesa e com links para os textos.



Livros

___, Adventures in English Literature. HOLT, RINEHART & WINSTON, 1996
Um livro muito bacana sobre literatura inglesa, com textos bem abrangentes.

Sampson, George; Churchill, R. C. The Concise Cambridge History of English Literature. Cambridge University Press; 3 edition, 1970.
O melhor livro sobre literatura inglesa, com um capítulo enorme sobre o romantismo inglês.

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